“É ótimo ficar assim abraçadinho. Eu também sou carente.”
Tam-bém? Como assim,
também??
Também é a puta madre que te pariu, seu @#$%¨& dos infernos!
Nada disso saiu de minha boca, é lógico. Não é de meu costume expulsar ninguém a pauladas de minha casa por um simples comentário pouco lisonjeiro. Aliás, não é – ou, pelo menos, não era – de meu costume me importar muito com o que os outros pensassem de mim. Já que minha timidez tantas vezes passa por arrogância; já que não falta quem veja no meu celibato a
prova concreta de meu lesbianismo; já que os leitores desavisados destas minhas blogueiras confissões me têm como uma grande "libertina" (pra não usar as palavras
deles)... A todas as concepções vigentes sobre minha pessoa, a adolescente dentro de mim sempre respondeu: e daí?
Mas como todo adolescente, além de
blasé, tende a ser equivocado...
“E daí” é uma ova, Dona Kika! Até parece que eu, também, não sou moldada pelo que os outros
pensam de e a maneira como
reagem a mim... Não há como fugir do olhar do outro: ele nos constitui. Como disse lindamente o lindo escritor de lindos e angolanos romances José Eduardo Agualusa: “somos o que esse olhar diz a nosso respeito.”
Bom, pra não perder a banca totalmente, digamos que há quem se importe com o que qualquer ser humano pense dele, e os que se preocupam com o que
alguns indivíduos possam vir a pensar deles.
The good news is you can choose your mirrors.
A adolescente dentro de mim sempre teve a pretensão de querer ser Kika à revelia dos olhares alheios. Só segui mesmo os poucos modismos que me agradaram ou os que a gente simplesmente não pode ignorar sem cair no ridículo. Vejo na minha coleção de discos (nada de mais, nada de menos: cerca de 500 CDs e uns 300 LPs) um paralelo interessante da imagem que – quando estou de bom humor – gosto de ter de mim mesma: uma coleção variada, cosmopolita, desprovida de grandes preconceitos e dotada de várias preciosidades... ao mesmo tempo em que tem grandes – enormes, abissais, imperdoáveis! – limitações.
São essas limitações aquilo que a visão do outro mais nos comunica. Já que estamos sempre muito mais predispostos a nos identificar com nossas virtudes, a percepção de nossas fraquezas pelo outro é muito mais reveladora do que o elogio a nossas evidentes qualidades. Não só isso, o olhar do outro pode se tornar a força motriz para que tomemos alguma atitude transformadora acerca de nosso próprio comportamento. Afinal,
não posso deixar que tenham essa opinião de mim!
Nada disso é novidade nos mais de três mil anos da história da filosofia. Mas não há Schopenhauer no mundo que te console a grande – enorme, abissal – tristeza quando um sujeito diz que gosta de te abraçar porque “também é carente”. Note-se a escolha do verbo “ser”, em oposição à alternativa “estar”, denotando um estado de permanência. Para uma mulher novamente solteira aos 34 anos, ver assim o seu reflexo no outro significa admitir:
– Pronto, deixei de ser um
indivíduo e me transformei num
estereótipo.
Sou Bridget Jones. Sou Carrie Bradshaw. Ou, o que é pior, sou todas as mulheres REAIS que abrem seus corações na série do GNT que estou roteirizando agora (
Nós e Elas, em breve nas suas telinhas). Já discursei neste mesmo blog sobre a alegria da minha recém-descoberta identificação com as mulheres de meu tempo, mas não é desse tipo de correspondência que estou falando agora. Falo da associação ao estereótipo da “balzaca moderna”: da mulher de trinta-e-tal que esconde, atrás do glamour pessoal e do sucesso profissional, o profundo e inconsolável anseio por uma família.
Não me entendam mal, namorar é bom e eu também gosto, por incrível que isso possa parecer a muitos! Mesmo depois do sufoco de uma separação, chega uma hora em que a gente se cansa, mesmo, dessa carreira sólo independente. Tenho encontrado muitos homens interessantes ao longo desse caminho – como testemunham os
posts deste blog – e minhas idiossincrasias, minha maturidade sexual, ou mesmo meu excesso de articulação certamente já assustaram a muitos deles. Que fazer? Quero, como a maioria das pessoas normais, amar e ser amada, mas não posso me transformar em outra para que gostem de mim, por maior que seja a minha adaptabilidade e o meu zelo pelo auto-aperfeiçoamento (até parei de fumar antes que me pedissem). Na pior das hipóteses, me diria uma solteirona resignada. Isto é, pelo menos até o infeliz me mandar aquele “também”. Também!?!
Também não esculachemos o moço, que na verdade não fez mais do que uma constatação inocente. O Pequinho veio com outra semelhante alguns dias depois. Devo estar mesmo emitindo sinais de carência para todos os lados. É natural, e a descoberta não me choca ou perturba. O que, sim, me incomoda é a maneira como esse dado é interpretado – e
catalogado – pelos outros.

O problema é esse apego das pessoas às classificações. Branca de classe média, tive a sorte nessa vida de nunca ter sido o alvo típico dos preconceitos mais correntes, mas isso vem mudando sensivelmente com a progressão dos anos e da idade, o que se traduz muito claramente nas relações com o sexo oposto. Os homens tendem a entrar em pânico quando descobrem que, apesar do seu corpinho de 24, já vai uma década desde que você ostentava tal idade. Os que não fogem gritando não se aproximam de você com a mesma tranqüilidade que teriam com uma moçoila de 20. Isso, meus queridos, é preconceito. Isso é quando o olhar do outro não constitui um reflexo, mas uma projeção. Eu me recuso a acreditar que toda trintona no mundo seja uma Glenn Close descabelada, disposta a tudo para embolsar um maridão. Tenho certeza de que muitas, mas muuuuitas, ainda pensam em curtir a vida, ainda têm sonhos a realizar muito diferentes da monomania da maternidade, e vivem plenamente um dia atrás do outro, livres desse "desespero" todo que se atribui à faixa etária...
O que acho engraçado é que, ao mesmo tempo, eu vejo à minha volta pessoas super novinhas que não nutrem metade da curiosidade e do potencial de encantamento com o belo e o novo que eu levo em meu coração! Vejo meninas muito mais preconceituosas e menos dispostas a explorar e descobrir... Dado que minha perplexidade perante o mundo só aumenta com o passar dos anos, – tenho muito menos certezas agora do que as que tinha quando garota – digo, com toda sinceridade, que em muitos sentidos me sinto mais jovem hoje do que antes. Não é discurso de auto-ajuda, gente: é a mais pura verdade.
Daí, eu acho, minha indignação com o pobre do menino e seu comentário pouco lisonjeiro (ainda que sua franqueza brutal fosse uma das coisas que mais me interessassem nele). Afinal, por muito perspicaz e sensível que ele venha a ser, no fundo foi mais um que me leu como um código de barras:
8070 1 = Balzaca
97685 = Carente
300000 = Perigo do relógio biológico!
14789000-1 = Fugir, fugir!!
– Transação efetuada com sucesso. A senhora confirma?
–
Não confirmo. Negarei (solteira, se for o caso) até a morte.
P.S. Luiz Henrique Araujo, consultor culinário e filosófico deste blog, me diz que a carência é o que nos move nessa vida desde o dia em que nascemos: a carência de leite materno, a carência de proteção familiar, a carência de sexo, de estímulo intelectual e expressão afetiva. É o que nos faz buscar prazer e conhecimento, ler, trabalhar, criar.
Sou carente, sim: GRAÇAS A DEUS! brada o vozeirão amigo no celular.
...It’s all about the mirrors you choose... o que seria de mim sem esses meus refletidos desabafos?